Templocentrismo e Religiosidade

Teologia para sobreviver ao templocentrismo e à religiosidade

por Gedeon Lidório

Uma tentativa de leitura do movimento evangélico brasileiro contemporâneo

Introdução

Neste texto pretendo tratar de uma série de ambigüidades. Esta não é uma análise profunda e ampla, mas uma visão limitada a aspectos da igreja evangélica brasileira, como bem trata da conceituação sobre o método científico, estudando atitudes e crenças para então chegar a uma síntese. Ao propor uma análise, pretende-se, estabelecidos os critérios, olhar a igreja de forma antropológica e sociológica, não apenas objetando entre o certo e o errado, mas tratando da igreja, seus membros, práticas e teologia como objeto científico de estudo de caso.

Muito se poderia dizer sobre a igreja, muitos livros já foram escritos e o que pretende se estudar aqui não é nenhuma novidade, mas ao analisar a igreja do ponto de vista antropológico e sociológico quer se enxergar o que obviamente não pode ser visto pelo prisma denominacional ou mesmo apenas teológico e sistemático, pois a isenção seria bem menor – ao partir de um ponto focal – sistemático – limita-se o objeto de estudo a um lado apenas. Ao olhar sem o ponto focal teológico ou mesmo eclesiástico tende-se a notar fatos, que isoladamente passam despercebidos, mas juntos com outros refletem as características, as conformações ou in-conformações que a igreja evangélica brasileira tem em seu contexto diário.

Como é a igreja numa época contemporânea?

Às vezes percebo que fazemos um exercício estranho – falamos da igreja e nos referimos ao texto do Novo Testamento ou à época em que a igreja chamada primitiva existia e assim somos tentados a pensar que somos aquela igreja. Os conceitos que esposamos são os deles; as práticas que tentamos implementar parecem-se com as deles; nossas doutrinas tem os mesmos nomes; nosso sistema de governo e por ai vai, onde confundimos idealização com realidade.

A igreja que viveu naquela época é única, como nós em nossa também o somos. As situações concretas de cultura, de sociedade, de economia, de artes, de beleza estética, de padrões religiosos dentro da cultura helênica-judaico-romana da época fizeram aqueles homens e mulheres viver daquela forma, expressar sua fé daquele jeito e com certeza foram autênticos. A igreja, em nossa época para além da modernidade tem características diferentes, mas nem por isso precisamos deixar de ser autênticos – e ser autêntico não é imitar irrestritamente a igreja primitiva, pois isso seria insensatez, a despeito da sua cultura e seus valores serem muito diferentes dos nossos.

Um exemplo: quando Paulo fala sobre véu, cabelo grande ou cortado para uma cultura eclesiástica do primeiro século, especificamente para a igreja que estava em Corinto ele tem valores em mente que não podemos reproduzir em nossa cultura justamente porque não temos as mesmas situações vivenciais. Mulheres do templo raspavam a cabeça como forma de religiosidade dentro dos templos da cidade, principalmente no templo de Afrodite, que impõe das sacerdotisas a prostituição cultual como forma de serviço religioso prestado à ‘deusa’ e aos coríntios. O homem coríntio visitava o templo para prestar o seu serviço religioso através de sexo com mulheres do templo. Coritianizar na época já era sinônimo de prostituir-se. Algumas destas mulheres, tornando-se cristãs deviam manter sua cabeça coberta com um véu ou mesmo deixar o cabelo crescer e não cortá-lo mais. Paulo instrui a igreja sobre isso como forma de dar um resignificado à estrutura daquelas mulheres, como que as instruindo a mostrarem para todos que não fazem mais parte daquele contexto de prostituição, pecado e subversão religiosa. Nós, em nosso tempo, trazemos esta situação puramente única naquele contexto como regra e doutrina para a igreja hoje e impomos às mulheres, muitas em muitos lugares, que não cortem seu cabelo ou que usem véu como sinal de que são santas. Isso é insanidade e uma hermenêutica no mínimo irresponsável. Não temos mais o contexto dos templos de Afrodite, das prostitutas cultuais e nem o contexto de vida da cidade de Corinto, portanto nossa maneira de ser, de pensar e de se portar diante de tal questão deve ser diferente. Ser cristão e crer no Novo Testamento não são, em hipótese alguma, um transportar irresponsavelmente de doutrinas e conceitos vividos por aqueles homens e mulheres do primeiro século e assim querer que nossos contemporâneos pensem igual ou vivam de igual modo. Isso é alienação, isso não é evangelho. O evangelho é supra cultural e pode ser contextualizado em qualquer cultura, época ou situação.

A época contemporânea caracteriza-se principalmente pelas falas multiformes a respeito da fé, do pluralismo, da secularização presente na pós ou hiper-modernidade e infelizmente esta maneira de ser e pensar não está distante dos arraiais da igreja.

O pluralismo vem à tona no passado principalmente pela contestação que Schleiermarcher faz sobre a exclusividade do cristianismo na pessoa de Cristo como sendo única porta para a salvação – a idéia por trás de tal contestação é que o evento da salvação está de alguma forma disponível em toda e qualquer religião e que Jesus é a suprema manifestação dessa consciência religiosa universal

Caracterizando mesmo que rapidamente o que se entende sobre a pós-modernidade podemos afirmar que uma transformação está acontecendo em todo o mundo e isso já se nota claramente na comunicação, na economia, na arquitetura, nas artes, na filosofia, ou seja é um fenômeno cultural amplo, apesar do que, em nosso contexto geográfico, o Brasil sofre de mudanças continentais, pois o que é amplamente visto no sul do país, por exemplo, não é o mesmo no norte ou nordeste. Parece que quanto mais ao sul, mais a cultura é secularizada e com atitudes ‘pós-modernas’ e quanto mais ao norte menos. Grenz afirmou que “estamos passando por um deslocamento cultural” (Grenz, 1997, p.16). Esse deslocamento molda todo o pensamento da vida do ser humano e não seria diferente no âmbito religioso ou teológico. O termo (pós-modernismo) talvez venha ser utilizado a partir da década de 30, mas somente na década de 70 é que ganha realmente destaque, apesar de entendermos historicamente que o ‘pós-modernismo’ não é algo muito fácil de detectar e que este processo se dá em meio ao ‘modernismo’. Grenz também nos informa que “quaisquer que sejam os outros significados que se possam atribuir ao pós-modernismo, conforme indica o termo, sua signficação relaciona-se com o deslocamento para além da modernidade” (Grenz, 1997, p. 17). Por isso prefiro o termo hiper-modernidade à simplesmente falar em algo que é pós alguma coisa, pois o que vemos é um fenômeno que está dentro de uma situação contemporânea e pontualmente diferente em diversos contextos. Vemos pontos de hiper-modernidade em vários lugares, mas também conseguimos ver até idade média em conceitos religiosos e práticas de espiritualidade sendo vivenciados por pessoas de nossa época.

Essa é basicamente a crise por qual a igreja evangélica brasileira passa, apesar do hiper-modernismo ainda não estar “completamente” presente no país, sendo que enxerga-se o seu brilho aqui e ali, em situações específicas, até porque não se pode falar sobre esse ‘fenômeno’ como uma coisa concreta, porém, como Grenz afirmou é uma mudança cultural ampla que vai além da modernidade.

O espírito hiper-moderno, este germe, porém, encontra-se presente nos círculos de relacionamento e a igreja, como sempre está um pouco atrasada em relação às mudanças, quase sempre correndo atrás do prejuízo e não antevendo crises, enxergando sua época para saber o que deve fazer.

Ter posições monolíticas não ajuda a igreja com o passar do tempo. Convicções são poderosas e devemos ficar firmes naquilo que realmente é a vida cristã, ao mesmo tempo em que estabelecer diálogo com as pessoas é uma tarefa das mais necessárias, pois somente através do diálogo, aberto, sem preconceito, é que podemos ajudar o máximo possível de pessoas. Por exemplo: a igreja luta contra a questão do homossexualismo e da homossexualidade e o discurso sempre foi o mesmo: é pecado e ponto final, mas o problema é que sempre se pensa nas atitudes e esquecem-se que por trás de tais condições e atitudes encontram-se pessoas, seres humanos com carne e alma, amados por Deus como pecadores que são, assim como todos os outros seres humanos que não estão na condição de uma sexualidade normativamente diferente mas carecem da glória de Deus (Romanos 3.23) – todos somos pecadores e carecemos da glória de Deus! Hoje começamos a pensar no que fazer com esta questão, pois batem em nossa porta medidas extremas vindas através de decretos, leis, planos de direitos humanos, porém creio que no Brasil o tempo em que poderia haver algum diálogo passou, pois as leis que virão e devem ser aprovadas nos próximos anos trarão sobre a igreja uma necessidade nunca antes vivida e, sinceramente, creio que não estamos preparados para viver estes novos tempos e muitos serão solapados em meio a tantas mudanças.

As sensações vividas por muitos brasileiros ao longo de sua vida junto à igreja têm desembocado em decepção e posterior afastamento de convívio com a instituição eclesiástica; muitas vezes pessoas que por anos a fio são líderes destas igrejas, tomam atitudes ousadas e radicais ao afastar-se de toda e qualquer influência deste círculo evangélico denominacional e acabam engrossando o número dos decepcionados e dos sem igreja. Muitos destes se recusam a viver qualquer coisa que pelo menos pareça igreja ou comunidade evangélica e radicalmente se colocam em posição diametralmente oposta ao seguimento evangélico denominacional. Por causa destas mazelas, muito se tem falado sobre uma nova forma de viver a vida evangélica, uma vida que não dependa das instituições. Infelizmente, isso tem gerado uma manifestação de saqueamento das verdades de Cristo, o Evangelho e criado ao longo do caminho pessoas e grupos que praticam um pluralismo religioso extremamente liberal e disforme.

Por um lado, o pluralismo religioso brasileiro parece manifestar uma concordância genérica, principalmente no pensamento comum de que toda religião é boa e que em matéria de religião não se deve haver discussão ou mesmo quando afirma que o que importa é fazer o correto, ser uma pessoa de bem; por outro lado os decepcionados e secularizados que saíram das fileiras evangélicas criam um vácuo enorme sustentado principalmente pela falta de absolutos, pois esta é a tendência – não fazer com outros o que fizeram conosco e assim incluem sem nenhum critério pessoas de qualquer credo ou manifestação religiosa e desta forma floresce o relativismo que é campo aberto para manifestação de pensamentos hiper-modernos e secularizados.

No Brasil, isso ou esse tipo de pensamento afetou diretamente a igreja. Quando olhamos objetivamente para a igreja contemporânea entendemos que há alguma coisa fora do lugar e esse objeto que se move fora do ritmo é causado principalmente por duas coisas: 1) falta de uma visão contextual em meio a vida comum, produzindo fiéis alienados e alienantes, pessoas que não conseguem agir e interagir em meio ao mundo secular sem sentir um vazio religioso, como se estivessem em pecado constante e também 2) uma interpretação das Escrituras com uma hermenêutica profundamente literalista e desprovida da devida contextualização da mensagem para nossos dias. As mensagens dos púlpitos parecem fazer sentido somente entre quatro paredes dos templos. A igreja perdeu os seus ideais absolutos e capenga entre um relativismo aberto e uma subjetividade que desacredita, ainda que veladamente de alguns referenciais. Assim, há de se colocar diversas crenças e práticas entre parênteses, em suspenso, para depois, devagar e sem alarde poder substituí-los.

Na tentativa de resolver tais dificuldades, muitos querem simplesmente objetar que a linguagem bíblica é por demasiada enfadonha e antiga e então optam pela tradução mais moderna, uma tradução contemporânea, seja ela NVI, Viva, Almeida Século 21 ou Linguagem de Hoje para fazer o povo entender as noções que estão sendo deixadas de lado. Isso não fará em si muita diferença para que se obtenha uma mensagem contextual, pois o extrato do pensamento de quem lê e quem escuta continua inalterado e as palavras diferentes não produzem efeito diferente, mas normatizam o que já se tem ‘aprendido’ desde os tempos antigos – já lemos os textos bíblicos com nossa teologia formatada e pré-definida, diria até preconceituosa. Existe aí um problema de comunicação – a palavra é comunicada tendo por base pressupostos pessoais – o que Paulo argumenta em Romanos 15.20-21 como sendo ‘outro fundamento’. Falar sobre Cristo, inda que em linguagem mais moderna e contemporânea simplesmente reafirma o arquétipo criado pela mentalidade plural, relativista e rasa das pessoas que o escutam. As palavras, lidas, recitadas ou memorizadas tem, por força desta nova hermenêutica que toma conta dos crentes, uma interpretação subjetiva, ou seja, depende de quem as lê. Por isso, verdade que são tidas como doutrinas passam a ser contestadas e perdem o valor dependendo do ambiente cultural e social que é lida ou falada e cada um segue absorvendo os conceitos que quer, interpretando da maneira que melhor lhe apraz, pois afinal vivemos um tempo em que a clientela é que dita como deve ser o serviço oferecido pelos templos religiosos. Queremos mais qualidade, mais conforto, menos confronto, mensagens menores, eventos no lugar de celebrações, cultos com novidades que atraiam pessoas, ambiente acolhedor, com pastores ou pregadores que nos façam rir, que sejam o centro do show e que reverenciem a nós, espectadores.

Isso tem transformado igrejas em produtos que são comercializados em vitrines de um ‘shopping’. Fazemos parte de um conceito sociológico que dita que se deve tratar das questões de maneira politicamente corretas, uma influência muito clara de conceitos defendidos por Foucault que dizia que todo discurso que quer se impuser como verdade ou como algo que é superior ao que se é falado ou vivido deve ser prontamente rejeitado, porque isso não é correto de se fazer. Nosso politicamente correto é uma tentativa de aplacar palavras, discursos e idéias e transformar as mensagens mais radicais em conceitos aceitáveis por todos. A grande pergunta que deve ser feita é: quem determina o que deve ou não ser falado? Na hermenêutica da hiper-modernidade não há absolutos, portanto é o relativismo pessoal que escolhe o que é bom ou não pra mim mesmo; sendo assim, ser politicamente correto e nunca discordar de ninguém em nada e nunca instruir ninguém a, por exemplo, seguir uma idéia eticamente correta, pois isso seria impor uma condição ou idéia sobre outro ser humano. O cliente é que deve sempre ter razão e por isso nossa clientela mostra-se cada dia mais insatisfeita e exigindo mudanças drásticas em como a igreja é conduzida. O padrão não é mais o padrão de Deus, mas o padrão humano. A qualidade não é mais a qualidade vinda do Espírito, mas uma tentativa de implantar o ISO 9000 em igrejas e comunidades religiosas... isso não quer dizer que não devemos fazer as coisas na igreja com qualidade, pois é pra Deus que fazemos, mas a qualidade de Deus é diferente do conceito humano de qualidade. Deus quer uma qualidade não aparente, que vem da interiorização de práticas e conceitos como amor, compartilhar, fé, abnegação, repartir... nossos conceitos de qualidade tem a ver com estruturas, bancos confortáveis, sensação de bem estar, pregações que não ‘ferem’ os ouvidos com verdades doloridas etc.

Essa é a idéia de uma inculturação onde o evangelho é retalhado por práticas politicamente corretas para que não traga ofensa, mas aceitação; não produza empecilhos, mas caminhos abertos; não crie rejeição ou preconceito, mas conformidade e concordância. O problema nisso é que o evangelho precisa ser contextualizado e não inculturado, pois o evangelho não é fruto de formulações humanas, mas é revelação divina. Na inculturação torna-se Deus num ser aceitável, que não condena, mas somente aceita e somente inclui. Na contextualização da mensagem Deus continua Deus, mas sua mensagem é entendida dentro do contexto, ela toda, não parte dela e ao mesmo tempo em que Deus ama ele disciplina; ele condena; ele rejeita; ele modifica o caráter; ele faz crescer o ser humano, na condição de tornar a cada um de nós mais parecidos com Cristo, seu Filho.

Padece-se de uma reforma radical, onde tanto a mensagem como a sua interpretação falem a língua do brasileiro, desça para suas necessidades e transforme a realidade do ser humano, dando lugar não a uma avalanche de regras e normas, leis e doutrinas, mas a uma continuada sensação de estar sendo moldado pela vida, por Deus, em alguém mais parecido com Cristo – só assim a Igreja atingirá as pessoas e moldará o caráter delas; só assim veremos corrupção sendo transformada em confissão; desvios de verba sendo transformados em reposição do que se roubou e sucessivamente uma grande subversão dos valores onde crises pessoais, familiares e comunitárias se darão e esta consciência avassaladora ajudará a modificar a realidade de milhões de pessoas.

É preciso pelo menos tentar responder a Ghandi, quando ele dizia que se enxergasse um cristão que fosse parecido com Cristo ele mesmo se tornaria cristão.

Parece, em primeira análise que conseguimos viver dia após dia separando o inseparável, tentando fazer com que o profano do mundo secular não invada o espaço sagrado e assim contaminando-nos a todos. Temos esta noção espacial advinda principalmente das questões centrais da religiosidade do povo do Antigo Testamento ou talvez, de nossa interpretação de como vivia este povo e numa tentativa de trazer para nossa época, nosso contexto, mensagem, regras, normais, leis e vivência do Israel, geográfica e historicamente localizados em uma época completamente diferente da nossa – precisamos urgentemente entender que o evangelho é a mensagem de Deus em Cristo para nós e é revelacional, ou seja, pode ser entendido em qualquer cultura, em qualquer época, em qualquer momento histórico sem que seja necessária a importação dos conceitos aplicáveis apenas à cultura de Israel, mas contextualizados completamente em nossa cultura, língua e época. Infelizmente, quando nos evangelizaram trouxeram juntamente com a Palavra de Deus a cultura daqueles que nos doavam do seu tempo e ministério e a um pacote fechado chamamos de evangelho tanto os conceitos bíblico-teológicos a respeito de Cristo como cânticos, roupas e costumes dos povos que nos evangelizaram. Criou-se um dualismo radical e um pragmatismo sem medida em nosso meio evangélico nacional.

Este nosso dualismo tem raiz em uma visão errônea bíblico-teológica do Antigo Testamento e da falsa noção sobre santidade e separação do mundo que temos como se ser separado (ser santo) fosse algo alienante e restrito a alguns ambientes que nos foi trazida pelos que nos evangelizaram no passado.

Olhando para os escritos do Antigo Testamento e para a história de Israel vemos um padrão que se interpõe na relação ser humano e Deus: quanto mais perto das coisas de Deus, do sagrado, mais perto de Deus e então, quanto mais distante das coisas sagradas mais longe de Deus.

Esta idéia permeia todo o AT e a própria vida relatada nos tempos do Israel bíblico. O tabu, ou seja, o instrumento de preservação do sagrado e de identificação do profano é que vai ajudando o povo de Israel a viver de acordo com suas crenças e quando analisamos isso entendemos que somente assim poderemos compreender a vida em sociedade do povo de Israel e, por conseguinte os seus escritos muitas vezes tão radicais pra nós nos livros do AT.

Em uma conversa informal com o Dr. Stefan Kürle (biblista e especialista em AT, professor na Faculdade Teológica Sul Americana) ele me faz ver que há quatro grandes categorias que precisamos analisar quando olhamos para a espiritualidade no AT – de um lado o sagrado e o profano e do outro lado as coisas puras e as impuras. De acordo com ele, o sagrado e as coisas impuras são ativos, ou seja, podem influenciar e modificar o status das outras coisas; o profano e as coisas puras, porém, são passivas, ou seja, sempre sofrem a ação sobre elas.

O profano é visto por nosso povo brasileiro como um conceito igual ao da impureza e temos a tendência de pensar que tudo que é profano é errado ou pecado.

Precisamos entender isso: profano, num contexto de análise antropológica e sociológica é simplesmente aquilo que não é sagrado, ou seja, pertencente a Deus e ao seu contexto – no AT, o templo era sagrado, enquanto que as casas que habitavam as pessoas eram profanas – ou seja, um era dedicado, sacramentalizado para o uso de Deus e para Deus e as outras coisas era comuns, ordinárias, faziam parte da vida comum.

Precisamos fazer uma separação entre aquilo que encontramos no AT, pelo menos no que é escrito e composto antes do exílio e aquilo que é escrito pós-exílio na Babilônia. No período pré-exílio, grande parte dos escritos origina-se em meio ao povo numa tentativa de subverter a ordem estabelecida, contra a opressão monárquica em Israel e produzem grande parte dos textos libertadores do AT, onde e espiritualidade e o espiritual não precisam ser revestidos apenas de coisas sagradas, mas a vida ‘profana’ (comum) do povo é revestida de uma espiritualidade libertadora e centrada na relação com Deus e não apenas com o templo e a religiosidade vigente.

No pós-exílio, porém, os escritos são revisitados e toma-se muito da idéia conceitual do ‘zoroastrismo’ que produz um dualismo exagerado e uma ênfase que ultrapassa os conceitos e invade a vida de maneira que tudo que é Deus e que é a vontade de Deus para o povo tende a ser somente aquilo que é considerado como sagrado – o templo (eles tem saudade dele), os sacerdotes, os objetos do templo, as orações feitas no templo e a vida comum, ordinária (profana) é desprovida desta significação espiritual; isso, a meu ver, cria ao longo do tempo o nosso conceito de santidade e santificação que é estar fora do mundo que para nós é profano (não apenas diferente do sagrado, mas em oposição a ele e com poder de modificação do seu status). No caso de Israel Deus interfere de modo profundo através de Jeremias quando fala:

      “Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados que eu deportei de Jerusalém para a Babilônia: Edificai casas e habitai nelas; plantai pomares e comei o seu fruto. Tomai esposas e gerai filhos e filhas, tomai esposas para vossos filhos e dai vossas filhas a maridos, para que tenham filhos e filhas; multiplicai-vos aí e não vos diminuais. Procurai a paz da cidade para onde vos desterrei e orai por ela ao SENHOR; porque na sua paz vós tereis paz” (Jeremias 29.4-7).

Com isso Deus estava querendo mostrar que a vida sagrada que ele desejava para o seu povo não era simples lembrança ou menção de um passado destruído, mas a espiritualidade no conviver com a sociedade local, abençoá-la, fazer dali o seu lar, fazer dali o lugar onde poderia abençoar e ser abençoado, fazer dali o centro da vontade de Deus para o povo.

A vida evangélica contemporânea no Brasil, porém, é tremendamente dualista e profundamente pragmática.

Dualista porque não consegue ver que o sagrado precisa invadir a vida comum (profano) para exercer o seu poder de transformar em puras coisas impuras e que esta separação de mundo da vida da igreja é contrária ao próprio discurso de Jesus em João 17, na sua oração sacerdotal, onde ele pede ao Pai que não nos tire do mundo, mas que nos santifique em meio a ele – ou seja, faça de nós, templos andantes que somos, objetos que santifiquem o profano e ajudem na transformação de coisas impuras em puras.

Pragmática porque instaurado este conceitual dualista é necessário pensar que somente pessoas certas, fazendo aquilo que é correto darão o resultado esperado por Deus e, portanto será o que Deus espera.

Um grande exemplo disso é visto na megalomaníaca idéia de crescimento de igreja que temos em nosso contexto brasileiro. Quando dois ou três pastores se reúnem pra conversar alguma coisa invariavelmente a pergunta: “Quantos membros tem a sua igreja?” vai estar presente. Acabamos por crer que as metodologias, os modelos, as estratégias são em si mesmas eficientes para dar vazão ao nosso apetite voraz por mais pessoas em nossos templos. Nada mais pragmático do que: seja a pessoa certa, faça a coisa certa, faça no lugar certo que dará tudo certo.

Esse pragmatismo nós herdamos da cultura norte americana e gostamos destes modelos prontos, enlatados e que simplesmente precisam ser replicados para que o resultado seja colhido – mais pessoas em nossos bancos, mais eficiência no ministério pastoral, maior eficácia de nossas estratégias, melhor relação custo-benefício em nossos investimentos missionários. É necessário ter lucro, ter resultado para que seja correto fazer.

Esta opção pelo que funciona é uma demonstração também da ênfase da hiper-modernidade nos pensamentos inclusive de líderes eclesiásticos tidos como conservadores e fundamentalistas. A grande questão aqui, do pragmatismo que exala nas práticas funcionais é que a verdade não mais importa em última análise, mas sim, como os resultados vão aparecer e como serão vistos e principalmente como é que isso vai impactar nossa vida eclesiástica, nos transformando em referência para os outros, pois, estamos fazendo diferença em nosso contexto. Quase sempre, em reuniões de liderança hoje, ouvimos sobre onde queremos chegar. Metas. Resultados. Números. O trabalho em si, o caminho que se vai pagando preços para estar mais perto do Salvador e da sua vida é substituída por gráficos e relatórios de resultados no alcance de pessoas.

Há vários perigos deste pragmatismo em meio à igreja. Ronaldo Lidório, em seu livro “Plantando Igrejas” lista alguns:

  • O perigo dos resultados substituírem o caráter no perfil do obreiro - o equívoco da valorização dos frutos em detrimento do coração piedoso e crente;
  • O perigo de a capacidade humana substituir a procura por dependência de Deus - O perigo de supervalorizarmos as nossas estruturas no que tange a logística, conhecimento, preparo acadêmico e capacitação em detrimento da prática de viver, trabalhar e sonhar tendo, sobretudo no coração a incrível convicção de que nós dependemos de Deus;
  • O perigo das estratégias certeiras substituírem o compromisso com a Palavra no crescimento da Igreja e expansão da obra missionária - nem tudo que dá certo é necessariamente bíblico e íntegro;
  • O perigo do zelo teológico se divorciar da prática missionária - de desenvolvermos um ensino teológico sem ligação com a Igreja, sua vida e dinâmica.

Enfim, o cristianismo e a cristandade cada dia mais estão separados e parece não tão distante o dia em que as palavras do apóstolo João no Apocalipse, em que Jesus, do lado de fora, bate na porta e diz querer ter comunhão com sua igreja, mas esta nem o percebe. Parece que estamos criando um cristianismo onde Cristo não é mais o centro, mas o ser humano e suas necessidades e desejos.

Nossa espiritualidade tem sido desencarnada e numa mescla de espiritualismos com legalismos criamos uma ‘máscara’ e extrapolamos a fé; criamos novas maneiras de enxergar expressões cúlticas como se isso fosse o centro de nossa espiritualidade. Trocamos a espiritualidade do ser por um ser espiritual dentro dos templos, dos cultos, das atividades e eventos que promovemos para criar ‘comunhão’.

Somos crentes do templo, centralizados na espiritualidade que faz sentido apenas dentro das quatro paredes em que nos congregamos como se igreja fosse, em qualquer análise apenas este momento mágico do culto público, onde nos reunimos, louvamos, sorrimos, ouvimos, dizimamos, ofertamos, somos confortados e localizamos a espiritualidade – Deus está presente no seu santo templo é traduzido por nós como Deus presente em ‘nossa igreja’ – um lugar, uma casa, um prédio suntuoso, um hotel, um café... Localizados geograficamente substituímos a união de Cristo com sua igreja, em seu corpo, pelo Espírito que habita na igreja pela união da comunidade local – a igreja é maior que o templo e passa a maior parte da vida na prática, fora dele.

A igreja é você, sou eu, em nossa casa, criando nossos filhos, vivendo a vida comum do lar; trabalhando como empregados; vivendo empresários; desempregados procurando emprego; mulheres querendo ter filhos; crianças sentindo medo do escuro; adultos tendo medo do futuro e das mudanças econômicas; na fila do banco; no banco da praça; no supermercado; no caixa eletrônico; andando de carro; subindo para o ônibus; caminhando na rua; vivendo junto com as pessoas – a igreja se mostra, a igreja se ‘reúne’, a igreja se insurge e Cristo caminha entre nós muito mais vezes entre nossas mazelas e dificuldades do que em meio a muitos cultos megalomaníacos e frívolos, desprovidos de sentido de glorificação do Senhor, numa tentativa vã, mas bem sucedida, de auto-glorificação, de auto-nomeação, de auto-adoração.

Deus precisa ter misericórdia de nós neste nosso tempo de ser e de viver.

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